verto em água salgada
não sei mais o que é lágrima e o que é mar
verto em água salgada
não sei mais o que é lágrima e o que é mar
como puderam sair da mesma boca
as coisas mais lindas
e as mais cruéis
que já ouvi?
quanto tempo ambas levam
pra sair de mim?
Criolo diz que não existe amor em SP, mas eu sou teimosa. saio procurando amor em tudo, nos detalhes, nas esquinas, nos encantos de uma livraria nova que decido conhecer, nas músicas, nos livros, na partilha de dança e máscara de argila com uma amiga, no sorvete preferido, numa peça de jogo de tabuleiro, na tentativa de ressignificação das ruas do centro – e dos dias -. esses dias fui procurar amor nos corações pintados na praça Roosevelt. saio procurando amor em tudo, até onde ele não pode mais existir. teimosa. às vezes esqueço que procuro amor em tudo… quando ele transborda em mim.
–
pandemia mundial. em SP chove granizo. no interior, tempestade de areia. lembro que tudo que temos é o agora. sinto a falta. sinto o excesso. sinto muito. sinto tudo transbordar.
livros me trazem um combo bonito de presença e fuga, desconexão e centramento, realidade e fantasia, sufocos e respiros. são fiéis escudeiros quando fica difícil demais. por vezes me abraçam, outras dilaceram até ferida aberta. alternamos entre afagos e lágrimas. o tempo passa, eles ficam. sempre encontro algum trecho que consegue me dar colo ou explicar algo que não encontro palavras para.
hoje lembrei de um livro sobre amor que li anos atrás. um desses livros que caem no colo por acaso e trazem uma identificação que te abraça e/ou machuca em cada página. hoje uma dessas páginas lidas num livro emprestado há tanto tempo me voltou a mente e me tomou inteira num gole. eu não encontraria palavras para.
na impossibilidade de mensurar as faltas, no excesso de mágoa e angústia, no transbordar dos afetos que não acham lugar, nas noites insones com tanta mistura de plural e singular, memórias concretas, quereres impossíveis, conversas solitárias à dois, palavras não entregues ao destinatário, desconhecer o que foi lar, recriar o chão, aceitar o inaceitável, revirar no estômago, justificar o injustificável, virar cachoeira, desaguar, ser mar, encontrar descasos mesclados com afagos, sentir no corpo o registro das inconstâncias, do aperto no peito à falta de ar, o grito que vira sussurro que se esgana em silêncio. lembrar do que pulsa, recordar a entrega, sentir amor em cada poro, fechar os olhos e passear por cada centímetro, cheiro, gosto, textura e sensação, palpar a ausência, a lembrança como único abraço possível. tudo tão menor que dois, tão maior que um. tanto sufoco buscando sossego. como mudar o pulsar, reaprender a respirar e ainda lembrar que há beleza pra chegar?
meu maior medo, desde a adolescência, é ser estuprada.
hoje passei o dia atendendo mulheres. mulheres entre 15 e 60 e tantos anos. trabalho com mulheres desde que comecei a clinicar. estudo sobre isso, fiz meu TCC sobre violência de gênero e não à toa ele foi intitulado “a (in)visibilidade da violência contra a mulher”. até hoje questiono sua visibilidade.
hoje lembrei que, no dia que meu TCC tomou corpo, tomou corpo também a notícia que uma adolescente de 16 anos tinha sido estuprada por 33 homens. 26 de maio de 2016. naquele dia todas as mulheres ao meu redor perderam um pouco o chão, todas tiveram medo da invasão. também lembrei que durante os 4 primeiros meses de quarentena, os casos de feminicídio cresceram 22%.
ontem, 3 de novembro de 2020, li pela primeira vez o termo “ESTUPRO CULPOSO” e senti um chute no estômago vendo o vídeo da audiência do caso. “eu to implorando por respeito”, disse Mariana Ferrer sendo humilhada por um advogado escroto que tentava usar suas fotos como… fotos como justificativa para que? pra merecer um estupro? lembrei da famosa frase do atual presidente do Brasil tempos atrás.
uma foto não é um convite. um corpo nu não é um convite.
algo sobre ser mulher sempre gritou em mim de um jeito confuso e, há anos, tenho trabalhado para que possa gritar bonito e forte, potente. mas algo sobre as invasões que sofri por ser mulher sempre me causou desconforto. invasões sobre definições de valores, (im)possibilidades, beleza e culpabilizações que passaram pela sociedade e chegaram até mim desde cedo. meu valor determinado pelo meu hímen, atenção à como me sento, como me porto, roupas que uso, com quem ando, horários que saio, lugares que frequento, o que/quanto bebo, palavrões que não deveria falar, número de pessoas com quem transo, meu valor determinado por…? não faço questão de ser a mulher bonita e direita, hoje só faço questão de ser.
sou dona do meu corpo. honro corpo como lar. na minha casa só entra quem e quando eu quero. honro meus desejos e vontades. tenho me curado em vários âmbitos. tenho me cercado de mulheres fodas, tenho honrado minhas ancestrais, tenho me conectado com femininos que não competem, somam. tenho sido cada vez mais atenta, empática. tenho me honrado e tentado, cada vez mais, trabalhar pra que outras mulheres se conectem, assumam seus lugares, desejos, se honrem, se permitam viver, se permitam ser.
tenho me cercado de homens fodas também, mas recentemente tenho atentado mais e mais para a importância do masculino nesse processo. como ainda são poucos os homens que acessam de fato suas potências, afetos, vulnerabilidades, capacidades de acolher, cuidar e somar. e o quanto esses movimentos masculinos e femininos se interferem mutuamente. os últimos tempos só tem me confirmado que isso não é questão de gênero, é questão de humanidade.
“todo mundo tem direito a vida, todo mundo tem direito igual” Lenine tá cantando aqui no fone enquanto escrevo. só consigo me perguntar… será?
como Mariana, eu também to implorando por respeito.
aqui pensando… tudo que temos é o agora. voltei a me questionar “se não agora, quando?”. por que tantos afetos não chegam ao destino? por que tanto não dito? por que tanto medo?
desaprendo a guardar. fico achando que não vai dar tempo, porque a vida me contou logo cedo que, por vezes, não vai. se eu sinto, quero, desejo: digo. e ainda é tanto que calo, por não caber, não entender. eu gosto de pele, de cheiro, de alma, me interesso pelos detalhes.
quando que travou o toque? quando que os olhos se perderam dos outros olhos? quando que se enalteceu o vácuo? quando se importar menos virou vantagem? quando tudo ficou tão raso?
os lugares mais bonitos que conheci foram difíceis de chegar – os externos e os internos -, mas é deles que eu gosto mais.
a superfície é bonita, mas no mergulho tem imensidão.
faz tempo que não falamos do que realmente importa.
minha noção de tempo mudou
minha noção de afeto mudou
o mundo sapateando em cima do peito
a respiração pesa, encurta, acelera… falta o ar
ausência, insuficiência, inexistência
as angústias vão somando, embaçando, sufocando
tudo tão pontual, efêmero e descontínuo
lá fora não faz sentido. aqui dentro também não.
discrepâncias, discordâncias, divergências
uma sequência de desencaixes
uma sequência de desencontros
uma sequência de (des)sentidos.
os olhos inchados de chorar pela saudade, pela falta, pelo excesso. os olhos inchados de chorar pelos excessos das faltas, pelos excessos de mim. o corpo gritando a falta dos toques, a falta dos contatos, a falta. falta, falta, falta… que louco é transbordar me sentindo seca. como posso transbordar se me sinto seca?
a mente cansada até das próprias ambivalências. sonhos estranhos, impulsos novos, contenções improvisadas. essa solidão tem um gosto totalmente diferente das que já experimentei. ressignifico afetos, piso em solos incertos. experimento as trocas férteis, terrenos inférteis, sinto muito os vazios. sinto saudade de quem nunca vi. sinto saudade de quem sempre esteve aqui.
saio do eixo, me questiono, analiso, confronto. erro, acerto e erro de novo. me desespero, perco o ar, quero voltar atrás. quero correr pra frente. lembro que o lugar seguro é o corpo. o meu. nos ciclos de vida-morte-vida, foi esse corpo que sempre esteve aqui, também se refazendo. troco de pele. nela que nasço e renasço. infinitas vezes. me vestindo de mim.
cem dias de quarentena. faço um autorretrato. me pareço triste. edito em preto e branco porque acho mais poético. dizem que o triste é poético. não são poéticos esses cem dias sem.
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respiro. me recolho. escrevo. me acolho. preciso trabalhar.
há um mês a gente se encontra todos os dias. encontros reais, sem pressa. tomamos café na cama juntas quase sempre, mas vez ou outra dou preferência a um livro ou podcast como companhia. a gente tem se conhecido melhor – reconhecido – e tem sido interessante. ela me repreende, mas me acolhe. me julga por aquela mensagem, mas entende que era falta, saudade, não carência. temos discussões bobas e existenciais.
ela sabe fazer as críticas que realmente doem, mas vez ou outra faz uns elogios legais. ela é chata pra caralho, mas não reclama de estar trancada em casa, ri da minha cara felizinha quando digo que to cozinhando umas coisas bem boas, me olha com carinho nos dias difíceis, briga comigo na tpm e diz que to insuportável, mas me faz uma boa massagem nas pernas pra relaxar. valida minhas rugas, estrias, celulites, pêlos, vontades, desejos, impulsos, me manda embora da cama em dias bonitos e diz que tudo bem ficar o dia inteiro embaixo do edredom quando o céu tá cinza, desde que eu levante pra pegar comida. limites. concordamos.
ela diz que eu devia usar aquele vestido bonito pra trabalhar em casa mesmo, dança comigo e me deixa dançar sozinha. ela entende. quase sempre.
às vezes ela não quer falar comigo, quer distância, não suporta ouvir minha voz, não aguenta meus ciclos, meus quereres, minhas repetições, minhas intensidades. às vezes ela me enlouquece, mas me acompanha num chá quando to mal, divide meias garrafas de vinho, cervejas no almoço de domingo, prepara gin tônica com limão siciliano do jeito que eu gosto, me lembra daquela música felizinha pra dançar na cozinha e daquela música pra abraçar a alma enquanto abraço o travesseiro. entende quando eu preciso ficar quieta, em silêncio. sozinha. só.
ela me chama de ridícula e ri comigo da vida. me diz quando o céu tá bonito, me lembra de olhar a lua e de correr pra pegar aquele raiozinho de sol no meio da manhã. rimos lembrando que meses atrás fugi pro meio do mato num isolamento voluntário… e já estou pensando em repetir quando o isolamento obrigatório passar. vemos fotos juntas, sentimos saudades juntas, choramos juntas também.
é massa perceber que ela é, sim, a melhor companhia que eu podia ter nessa quarentena… e em todas as outras situações da vida. tem sido dias de olhos nos olhos, observando detalhes, sensações. nossos reencontros tem sido bonitos.
há um mês me olho no espelho todos os dias e, às vezes, me vejo.